terça-feira, 2 de dezembro de 2014

#20 - COMO UM LOUCO, Carla Pinto Coelho

Dou voltas e voltas à tua procura
como um louco
conduzo o meu carro alado
pelas ruas do tráfego virtual
e procuro-te entre páginas e páginas
estacionadas em segunda fila
-- meu lugar vazio, meu oásis no deserto



http://caisdasletras.blogspot.pt/2014/12/como-um-louco.html

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

#19 - S/TÍTULO

Abaixo do baixo
Desceste
Tanto quanto o
Instinto te impôs.


Não esteve em ti
Não dependeu de
Ti a salvação
Que procuraste.


Veio de ti porém
E outro ficaste sem
Saberes como foi que

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

#18 - O CADERNO, Sónia M.

O céu desaba na rua indefesa. Chora o céu.
E em mim chove. A noite parece ser mais noite,
mais escura, quando chove. 

Na mão seguro um caderno de capa vermelho-sangue. 
E foi com o sangue de alguma veia que me rebentou 
nos dedos, que dei vida a todas as páginas. 

Sinto dizer que não deixarei muito,
a não ser este caderno: silêncios que me arderam
nos ossos, porque a vida queimava.
Onde as dores devoram o papel nicado e amarelecido,
mais que o tempo. O que deixo são uns quantos
momentos comovidos e alguma mágoa alvoraçada.
Um cálice cheio da melancolia que os meus olhos beberam.
Se o leres, promete que não sentirás pena.
É nas profundezas dos abismos que se equilibra a vida,
e a noite se abre.  Sei que é pouco. Muito pouco.
Julgamos sempre ser mais do que algumas vez fomos,
ou seremos.



segunda-feira, 17 de novembro de 2014

#17 - GESTO ANTIGO

Era um gesto muito antigo o
Fechar das portadas quando
A noite vinha   um acto
Provincial nesse estoril à parte
Do tempo e fora do mundo
Português de então   como se
Avós e bisavós   mãe  eu  nós
Quiséssemos preservar o interior
Da casa   um ovo protector


http://janizaro.blogspot.pt/2014/04/gesto-antigo.html

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

#16 - NÃO INTERESSA, Carla Pinto Coelho

não interessa

que a casa esteja quente ou fria
se erga o sol finde o dia

não interessa

que ao silêncio das tuas palavras
se siga o desleixo do movimento

não interessa

a inalação do fumo
a percepção da terra

não interessa

que a esperança se erga
o corpo tombe

nada interessa


http://caisdasletras.blogspot.pt/2014/11/nao-interessa.html

terça-feira, 11 de novembro de 2014

#15 - REVERSO, Tania Anjos

uma visão me aterroriza:

o alfabeto 
outra me amedronta:
a folha
ainda outra me gela:
a pena

|||||||||||||||||||||||||||

penso, então, num novelo de lã...
(um novelo de lã...
...
...aguardo...)
 
 

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

#14 - MENU-MARMITA, Carla Diacov

é como preparar uma marmita
desse lado vamos com a parte gostosa
desse lado vamos com a parte que serve
mas que nem é tão gostosa
o centro é dividido
do lado de lá uma parte de
qualquer coisa com muita fibra
do lado de cá qualquer coisa mole que
não sirva
mas que dentro de toda a mistura
faça conceito e preencha a vagafissura no tempo
que é o horário do almoço
é como preparar uma marmita
agora vá e leia para os superpoetas uma de suas poesias



http://carladiacov.blogspot.pt/2014/10/menu-marmita.html

terça-feira, 4 de novembro de 2014

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

#12 - MISTICISMO XIX, Gyzelle Góes

O bar do Pires está mais caro do que a birosca da esquina, o preço para esquecer amores corrompidos subiu desde que a corrupção tomou conta dessa baderna politicamente incorreta. O guri do sorriso malandro me ligou quatro vezes desde que sumi dentro dessa cratera aflorada em mim, o toque me faz valsar sobre a vontade de me dar, mas logo lembro que me sobrou tão pouco.

Então recolho cada vestígio do que me pertence e tento perambular pelas ruas sem demonstrar o choro porque sou um livro não lido, uma bíblia satânica, a lágrima escorrendo através de olhos dramáticos. A melancolia está costurada em minha blusa de malha, e talvez também na expressão exausta da face.
O bar não vende bebida alcoólica às menores dores.
O banheiro do botequim está mais limpo do que o meu passado, acho que os amores me fizeram suja e bruta e se sou bruxa é culpa do coração sangue-suga que sugou as minhas chances de ser uma mulher devota a algum Deus que silencie os pecados. Esse mal que me acompanha me faz entrar em bares e me faz beber poções mágicas capazes de esquecer você, doce pretérito imperfeito.


http://palavrasdepoetamorta.blogspot.pt/2014/10/misticismo-xix.html

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

#11- MALDIÇÃO

Transforma-se em chumbo
Todo o ouro em que tocas.

É uma maldição que te guarda
Ou protege.


http://janizaro.blogspot.pt/2014/10/maldicao.html

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

#10 - "eu vi as luzes brotarem da montanha antes do grande incêndio", Nydia Bonetti

eu vi as luzes brotarem da montanha antes do grande incêndio
e um halo de sol mergulhado nas cinzas
em plena madrugada
a dança dos vestidos sobre as pedras do rio 
quando havia um rio 
que se podia ver 
da janela 
[e que cantava 
a música dos rios, de fazer dançar vestidos]
um grande rastro [vermelho] cortar o céu antes do amanhecer
eu vi
pude ouvir os cavalos relincharem na noite 
cascos sobre as pedras 
na rua deserta [fantasmas]
o arrastar de correntes
o estalo nas portas que nunca se fechavam, eu vi
os gatos no porão, as aranhas no forro e as pulgas no colchão 
de mola
mas ninguém me falou do grande cão faminto 
que mora nos relógios
das salas [feroz feito um lobo]
eu vi faíscas dos seus olhos de fogo, a casa incendiada 
e as fotografias
implorei pelas chuvas que não vieram 
era tempo de estio e a grande sede prestes a se instalar
na garganta 



http://nydiabonetti.blogspot.pt/2014_10_01_archive.html

domingo, 19 de outubro de 2014

#9 - PERO ADEUS, AI DEUS E U É?, Domingos da Mota

Pero Passos, passarão,
ergue a crista no poleiro,
um tudo-nada capão
no papel de timoneiro,
com a pose de tenor
e o bico recurvado,

impassível despudor,
obsceno arrazoado
por demais constrangedor,
pois bastante enviesado
sob um manto de rigor,
Pero tão despassarado.

Pero Passos passarinha
como um galo empertigado,
um tudo-nada, nadinha
convincente sobre o estado
que posterga da vidinha,
das andanças do passado.

Pero adeus, ai Deus e u é?
Quanto antes vá ciscar
para longe do meu pé,
muito longe do lugar
por onde faz finca-pé 
de sem dó pisotear.


http://morcegoseolhimancos.blogspot.pt/2014/10/cantiga-de-amigo.html

terça-feira, 16 de setembro de 2014

#8 - em 32 linhas, Mirtes Rodrigues

queimei minha mão de café.

e não há muito mais pra dizer ou sentir por hoje,
além desse ardor e 
do amargo 
do pouco que não derramei no chão...

tem ainda, talvez,
o cigarro 
que me queima a garganta

e o peito
que me traga
tempo
a cada verso,
volta depois volta
desse relógio quebrado que faço de mim.

penso que não poderia amar nada além desse tédio,
e dessa solidão que me queima 
a vida
quieta e constante, 
feito café quente de manhã.

penso que poderia amar muito mais que isso,
se me importasse em saber qualquer coisa sobre amor.

mas tudo é silencio,
até o que não é, é silencio.

casa vazia,
céu,
noite
e estrela,
música ecoando. tudo é silencio...

e a mão, continua ardendo quieta, do café que derrubei,

e já é uma da manhã...

nunca tenho nada para dizer além disso.  mas até aqui, tudo bem. 

amaria o teu café de manhã. 


http://mrodriguesssalles.blogspot.pt/2014/09/em-30-linhas.html#comment-form

sábado, 30 de agosto de 2014

#7 - A MÁSCARA FATAL DE MESSALINA, Domingos da Mota

Eu vi gelar as putas da Avenida
       ao griso de Janeiro e tive pena

       Fernando Assis Pacheco



Eu vi andar as pegas na Avenida

num tórrido Verão, ardia Agosto.
Se aquilo que faziam era a vida,
mas que puta de vida! Quanto rosto

sumido e consumido nessa lida,

à mercê do ferrete, e do sol-posto
dissimulado sob a perseguida
labuta marginal. A contragosto,

dei por mim a olhar, a ver de perto

um vulto que exibia o passo incerto
e arrastava os pés, de esquina em esquina.

Mas perdi o seu rasto, a sua sombra;

vislumbrando, a desoras, na penumbra,
a máscara fatal de Messalina.

http://domingosmota.blogspot.pt/2014/08/a-mascara-fatal-de-messalina.html

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

#6 - O QUE HÁ DE MAIS SELVAGEM EM MINHA VIDA, Ladyce West

Respeito o mar, sua força, sua paixão.
É profundo, imoderado, impetuoso e potente.
Cruel, enérgico, aniquilador e intenso.
Mar sereno não existe. É uma máscara.
Por trás da superfície calma há uma pujança brutal.
Ele hipnotiza e seduz. Mas é um mau amante.
É agressivo, destruidor, cruel. Feroz.
É o que há de mais selvagem em minha vida.
-
Suas ondas acarinham a areia para seduzir.
Molhe os pés, que belos tornozelos”, parece dizer.
“Venho beijar-te; não me canso de beijar-te.”
E no descuido, genioso e irritadiço, encapelado e bravio
Ele te leva, te ingere, te traga.
Ele te engole, te sorve, te consome e devora.
O mar, imenso, azul, verde, cinzento, faminto, enigmático e feroz
É o que há de mais selvagem em minha vida.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

#5 - A SAÍDA DO FAROLEIRO, Carla M. Soares

Já não tenho medo,
fugiu-me
numa vaga.
É criatura fraca,
coisa de nada 
contra os monstros de água
no promontório.
As paredes desta torre
estremecem como donzela
em conto de fadas
e acho que gemem de dor
as fundações.
Açoita-as o sal deste mar
feroz,
hoje talvez se despedacem.
Quantos anos resistiu
comigo no bojo,
quantos anos de luz no vazio perigoso
da noite no cabo.

No estertor sonoro  aquieto-me,
compreendo,
nesta guerra sem vencedores
o derrotado sou eu.
Morro no remoinho
que me acorrenta o coração.
Saio como quero.
Ato-me à lâmpada que ainda rompe
este horizonte de fúria.
Sou Ulisses
Deixo vir a sereia lamber-me os pés
Engolir-me os joelhos,
Trepar pelo tremer das coxas 
devorar-me o peito
e quando me beijar na boca
ofereço-lhe
o último fôlego
e vou.
E se a pedra persistir
onde eu rendi o corpo e alma,
hão de encontrar-me aqui
gravado nela.
 
 

#4 - ESCREVO PORQUE SENÃO EU MORRO, Hellen Hosseini

 Escrevo porque não sei desenhar, nem cantar. Embora eu goste de cantar meu blues todos os dias. Escrevo mesmo falando muito. Também escrevo muito. Escrevo para homens que pouco leem. Escrevo porque esses homens só não me alcançam porque não querem. Escrevo porque o ingresso do show que eu quero ir tá caro demais, acho que não vou mais. Escrevo porque não sou das matemáticas e mesmo assim ainda escrevo mal.
   Escrevo porque só gosto de quem não dá nada por mim. Escrevo porque não tenho peso para doar sangue. Escrevo porque não tenho aparência de moça mais velha e os moços que quero me veem como menina moça. Escrevo porque desço a rua já pensando que não tenho nada para fazer em casa. Mas adoro ficar em casa. Escrevo porque não tenho dinheiro para comprar todos os livros de todos os meus escritores preferidos.

  Escrevo por querer encarcerar na minha poesia quem não para de se esconder atrás das minhas mil paranoias. Escrevo para a tristeza se afastar. Escrevo porque não posso me aproximar. Escrevo porque não me dou bem com a minha mãe. Escrevo porque um dia quero ser uma boa mãe. Escrevo porque meu-primeiro-suposto-amor não me amou. Escrevo porque não sei qual é o meu filme favorito. Escrevo porque quando eu crescer quero escrever igual a Hilda Hilst. Escrevo porque quando eu crescer quero sentir como a Adélia Prado.

  Escrevo porque sou obcecada pela demência alheia. Escrevo porque eu mataria se pudesse, e vejo que nada me impede. Escrevo porque sou covarde. Escrevo porque quando eu falo, nem eu me escuto. Escrevo porque não posso fazer sua risada tocar no rádio. Escrevo porque você não quer que sua risada toque no rádio. Nem em mim. Escrevo porque sou a ovelha negra da família. Escrevo porque gosto de ser assim. Escrevo porque não sou o orgulho de ninguém. Escrevo porque não preencho ninguém. Escrevo porque ninguém têm nada com isso.

   Escrevo porque dói. E doer é bom. Escrevo porque sou masoquista. Escrevo porque como Caio Fernando Abreu, quero ser amada por alguma coisa que escrevi. Escrevo porque aquele homem disse que iria lembrar de mim pela minha poesia, mas nunca mais me procurou. Escrevo porque não consigo mais beber sem chorar. Escrevo porque chorar é patético quando é por alguém que nem sabe que eu detesto cenouras. De novo as cenouras.

   Escrevo porque não posso adotar todos os gatos abandonados pela cidade. Escrevo porque meus amigos vivem com pressa. Escrevo porque eu só tenho a pressa de escrever mais esse texto. Escrevo porque  deixar de ser criança foi a pior coisa que me aconteceu. Escrevo porque não ando de bicicleta há anos. Escrevo porque desaprendi a subir numa árvore. Escrevo porque reconheço quem não me conhece até de costas. Escrevo porque meu nariz é feio. Escrevo porque seu nariz afrontoso não sai da minha cabeça.

   Escrevo desde guria, quando fazia listas do que gostaria de ter. Com sete anos eu queria ter uma vaca. Saudade. Escrevo porque hoje só quero paz. Paz pra nós. Escrevo porque não posso fazer nada quanto a guerra no Oriente Médio. Escrevo porque ganho pouco e sou explorada. E não me atrevo a largar esse emprego. Escrevo porque não aceito o prazo de validade que as coisas/sentimentos/pessoas têm. Escrevo porque não posso escolher a minha família e meus amigos estão se extinguindo. Escrevo porque nunca viajei de avião e a tragédia vive no ar. 
   
   Escrevo porque mesmo tendo aprendido a não esperar muito faço isso por ilusão. Escrevo porque não sei fazer outra coisa. Escrevo para mulheres que nunca foram amadas. Escrevo porque não me acho bonita, mas a vida é. Nem sempre. Escrevo porque gosto da contradição. Escrevo por Inácio e Antonina, meus filhos bem amados que ainda vão nascer. Escrevo porque vou ter três filhos, e o nome do terceiro já escolhi mas não falo. Penso que vai ter o nome do pai. 
   
   Escrevo porque inventar é a minha única forma de viver. Escrevo porque só quero fazer isso. 


   Escrevo por amar Adélia Prado, que escreveu isso:

Eu não servia para ter nascido,
para comer com boca, andar com pés
e Ter dentro de mim oito metros de tripas
desejando a filigrana de tua íris
cuja cor não digo para não estragar tudo
e novamente ficar coberta de ridículo.

   Escrevo, porque não fui eu quem escreveu:

Quem és? Perguntei ao desejo. Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.

Foi Hilda. Deusa dos Grandes Nadas


http://editandoasaudade.blogspot.pt/2014/07/escrevo-porque-senao-eu-morro.html

quinta-feira, 31 de julho de 2014

#3 - "Eu vou às tardes pelas ruas", Porfírio Silva

Eu vou às tardes pelas ruas
olhar as mulheres feias. As desarranjadas,
as mal vestidas, as mortas de cansaço.
Olhar para elas nos olhos e descobrir
O que lhes bateu tantas vezes
até se esconder tão fundo a sua beleza.


http://monstrosantigos.blogspot.pt/2014/07/eu-vou-as-tardes-pelas-ruas.html

#2 - DAS SAFRAS..., Almma

há dias
que letras carrego

em outros, elas,
carregam-me

ora sou carga
ora sou escrava

palavra


http://naverve.blogspot.pt/2014/07/das-safras.html

#1 - DIAGNÓSTICA, Marina Tadeu

Sabes, com a menopausa
a cortisona e os antibióticos 
anti tuberculose
ando finalmente inchada
como se cada golfada de ar
por dentro ficasse pelo taco
ou por outro lance acobardado
com expulsões  
a prestações atrasadas
deste monstro cansado que afoga
entre oceanos o nosso Leviatã

Quando me disseram que ia morrer
dali a uns meses 
n ã o
pelas armas amor como antes
mas com tempo para dizer adeus
as flores não perfumaram 
com mais ou menos impiedade
o rastro do verme o circuito da abelha
nem o esterco nem o peixe
soltou bolha planetária em água impura
para nos lavar as mãos
ou a gaivota-mor estridente 
trespassou mais ou menos bicuda
uma outra cidade imunda
onde a vida de um filho cristalizada 
numa criança passiva e bela
pedia esmola para agradar
a nosso pendor dickensiano

Quando me marcaram a quimioterapia 
um alívio quieto mas tremendo trespassou
ainda alguma vaidade ferida num lamento
de não ter ido ao ensino superior
seduzir o senhor professor de filosofia
com esta demência precoce
em carne dura pois disso me arrependo sabes
nunca ter conseguido pensar
com o método de um argumento
metafísico justificando a crueldade
daquele Papa gagá que foi a Angola
revelar que o preservativo
é que provocava a SIDA
e que miséria é porque quer 
e não devemos
medir força à condição
conforme a lei natural do fatalismo
que rege sem discriminação
revistas em cabeleireiros
estratagemas mamíferos de silicone
e o manual de filigrama para principiantes

Como quem verdadeiramente fraco
desiste não fui capaz de dizer nada
procurar redenção última vontade
recado ao futuro, legado, perdão, remorso
rosa negra na mão romance completado
a quatro patas correndo
ou lamentar nunca ter vindo a lume
como sabes
e ri-me, ri-me com a audácia 
de me ter entregado todinha com o desejo em cera 
cobrindo os olhos à espera que os rasgassem 
com boca canora
os que nunca me quiseram sobretudo bêbedos
declamatórios que me enervavam muito com 
vagidos graves clamando auditório de melhor qualidade
que a dureza do meu ouvido colado à renda
suja do cabelo que iria finalmente perder
ao comprido como o corpo imobilizado no
CT scan, esquifóide, casca de ovo
e a imortalidade cingida à wikipedia

Um certo alívio sim de não ter de me matar
só porque a miopia nunca almejou a prateleira
dos prazos de validade 
absolvendo a fome como se pudesse

Curiosamente foram os estranhos
à corrida, os novos
como a Joana e o Helder
que perguntaram por mim
sem esperar resposta ou decerto favores
enquanto tu desajeitado em matéria de lirismos
e magoado por te dizer da baixeza mundana
dos que mais prezas conseguiste mesmo assim
dizer olá
mesmo assim ocupado a fazer malabarismo
para essas escolásticas 
com brincos de ouro
e civilizadas poses de retoque
a reboque de tua chama
essas de quem tenho ciúmes  
e que usam palavras
como incontornável e medíocre
e fazem do maiot a maiêutica
da celulite na testa e se preocupam 
com quem merece como elas
um sol privado no telhado
de casa hipotecada 
à banca que denunciam

Claro soube logo 
que não voltaria ao nosso país
onde há gente de bom gosto e dores de corno
gente magoada
por não ser reconhecida
num panteão onde aconteça nada
gente que aponta o dedo a pimba
depois de almoçar com o antigo colega de carteira
que foi ministro e poeta
gente com auditório
congresso, antologia e julgamentos sumários
gente que bate no ceguinho
e se identifica com a injustiça
de não dar mais nas vistas
e que proteges como pai
profissionalmente órfão
deixando voar nossa mosca transístor de Deus
que enxotavas com teu trompete anavalhado
e eu com minha voz enrouquecida
e quase livre a fugir para o acaso

Quando por erro me diagnosticaram
com cancro no pulmão
entendi que não era o sopro
que disfarçava no vento o poema perfeito
o poema pueril de sentimento
desmesurado que avilta
na lágrima a tristeza a nadar
no riso a alegria a tremer
na cama o amor a dançar
e no amor o coração a bater
em estátua tua em qualquer parte
de preferência insegura
e não formosa de asa
nua e crua
dura